A Nossa vida Digital faz a Gente Querer Sempre Mais? Pensamentos Sobre o Filme Le Jeu (Nada a Esconder)
Sexo, amor, traição, segredos, relações complexas e insegurança. Basicamente tudo que a gente quer ou sente no looping dos relacionamentos fica escancarado durante o jantar no qual se passa o filme Le Jeu (Nada a Esconder), com direção de Fred Cavayé.
Cheio de clichês franceses - que a gente adora - em um apartamento cool onde o centro da casa é a cozinha e a sala de jantar, a anfitriã Marie (Bérénice Bejo) é psiquiatra e o marido, interpretado por Stéphane De Groodt, cirurgião plástico. Marie passa o filme de calça preta reta, camisa branca, mocassim preto, a la Inès de la Fressange, o cabelo preso em um coque baixo e quase zero maquiagem - by the way as três mulheres mal usam maquiagem. Acho uma delícia ver como a dinâmica dos franceses gira em torno das refeições, é como se a língua universal fosse a comida, o vinho e as questões da vida.
Durante o jantar, Marie começa a questionar e provocar o marido sobre o comportamento recluso dele com o celular, como se estivesse escondendo alguma coisa e propõe um jogo em que todo mundo deve deixar os celulares no centro da mesa. Qualquer ligação tem que ser atendida no viva voz e a Siri tem que ler as mensagens e os emails. Eu sou do time de que quem procura acha, não mexo no celular do meu marido - vou ter que tomar uma atitude se encontrar alguma coisa e no momento não tenho energia nem tempo pra isso.
No começo do jantar, o jogo se inicia, e é aí que se revelam as vidas paralelas de todo mundo que está ali.
De certa forma traz um conforto ver que a vida de ninguém é perfeita, que todo mundo está sujeito a passar por uma traição, a deixar a rotina criar uma deprêzinha, que pode te deixar confusa e propensa a fazer besteira, e que de perto ninguém é muito normal. Por outro lado, a busca incessante por momentos de adrenalina, por something else, parece ter mais dedicação do que a tentativa de se reaproximar de quem a gente ama, além de requerer habilidades de Jacques Clouseau, como se esconder no banheiro para trocar nudes alheios ou ter que engolir a raiva quando você não é a única mulher com quem seu affair ta saindo - sendo que você é casada e ele também.
Ninguém cuidou do próprio relacionamento, e deixou um abismo gigante se abrir entre as duas pessoas, resgatar isso além de ser trabalhoso, dá uma preguiça... Ninguém quer falar de problemas.
Existem os casos sem solução, dos homens e das mulheres eternamente insatisfeitos - acho que nossa personagem principal (aqui vi a necessidade de definir o sujeito, coloquei a frase desta forma, veja se é cabível no contexto) se encaixa aí, está em estado de insatisfação constante. Ela tem uma relação péssima com a filha adolescente, casou com um cara que o pai não aprova, está prestes a fazer uma plástica, provavelmente uma maneira errada de tentar corrigir alguma questão interna, e trai o marido com um dos amigos do casal. O marido resolveu ir para a terapia, mas escondeu isso da mulher (esse é o seu big secret) porque ela é terapeuta e iria analisar isso profundamente, podendo pensar que com essa atitude dele ficaria decretado que eles têm problemas e ao não pedir uma indicação pra ela, que ele não teria confiança na mulher, entende? E ele sabe do caso dela, mas é humano demais para tomar uma atitude, então ele foi para a terapia. O diálogo dele com a filha adolescente, no viva-voz, com ela se abrindo sobre a sua primeira noite com o namorado foi a conversa mais linda que eu já vi de um pai e uma filha no cinema. Foi tão especial, com tanto respeito dele como pai e tratando a filha como uma mulher crescida capaz de tomar as próprias decisões, sem infantiliza-la como uma adolescente rebelde e precoce.
É um delicia e coloca a gente pra pensar na nossa intimidade; no que vale a pena perder tempo e no que precisa de atenção para não deixar o que a gente gosta, e quer preservar, se perder.
Le Jeu é uma adaptação do original italiano, Perfeitos Desconhecidos, e virou uma febre mundial. Já foi adaptado para a Grécia, México, Rússia, Coréia do Sul, Turquia, China e vários outros, talvez 16 países no total. A principal razão para isso é que o filme mostra a nossa realidade com a caixa-preta que virou nosso celular e cheia de segredinhos, como sempre foi a vida de todo mundo - mas agora tem tudo isso disponível ao acesso de qualquer pessoal. Estaria o problema na nossa vida digital que faz a gente querer mais, sempre?